Por Reinaldo Campos
Uma das memórias mais traumáticas que eu tenho da adolescência é do momento em que, na aula (obrigatória) de Educação Física, dois "capitães" da nossa sala escolhiam quem iria participar dos times que iriam jogar. Todos os garotos sentados no chão da quadra e aquele momento que, pra minha agonia, se repetia toda semana: um a um, meus colegas de classe iam sendo escolhidos e se colocavam em pé atrás do capitão, mas não sem antes cumprimentá-lo com um "toca aqui" com as palmas das mãos fazendo um estalo oco ruidoso no ar e um sorrisinho maroto no rosto no estilo “tamo junto, parça”. Eu assistia aos dois times sendo preenchidos até que sobravam eu e um outro infeliz. Nessa hora já não tinha mais ninguém se importando com a formação do time — quem mais interessava já tinha sido eleito nas primeiras rodadas alternadas e agora todo mundo só queria mesmo era jogar. Ninguém nunca me perguntava se eu queria estar lá, se eu queria jogar, se tinha preferência por estar em algum dos times ou jogar em qualquer posição. As escolhas já tinham todas sido feitas por mim.
De jogador a facilitador
Fast forward 30 anos. Saí da posição do jogador (que na verdade não sabia jogar nada com bola e tampouco conseguiu aprender naquele ambiente da aula de educação física — ah, Reinaldo que absurdo, querer aprender na escola!) para trabalhar como facilitador de times — não de futebol ou handebol, mas de organizações que estão buscando maneiras de inovar por meio da colaboração. E somente há muito pouco tempo, enquanto estava desenvolvendo um curso de especialização em facilitação pelo design, descobri as nuances vitais que distinguem os papeis do jogador e do facilitador.
Há uma figura que tanto pode jogar, como arbitrar e (re)inventar o jogo/realidade. Trata-se do FACILITADOR. (Caio Vassão)
Se você quiser saber mais a respeito, não deixe de ler o artigo "Metadesign, Jogos e Transformação Cultural" do meu querido mestre e amigo Caio Vassao, com quem eu tive o prazer de escrever aquele curso de facilitação e que é o autor desses conceitos mencionados acima que relacionam jogos e facilitação.
Nesse contexto de trabalho onde tenho atuado, um dos maiores desafios que as pessoas continuam enfrentando no trabalho em equipe é…lidar com a própria equipe! O cenário agora é um tanto diferente daquela quadra das minhas aulas de Imposição, digo, Educação Física, onde os "talentos" eram escolhidos apenas na camaradagem, mas o contexto tem lá suas semelhanças: os integrantes dos times são selecionados por um capitão, que forma sua tropa de elite usando seus próprios critérios. Na quadra, era cada um por si, dando seu melhor. Se alguém dava uma canelada ou perdia um passe era massacrado pelos próprios parças que alguns minutos atrás estavam celebrando a gloriosa formação do dream team. No contexto organizacional competitivo e orientado para o comando e controle, as faltas em campo também são punidas, não necessariamente com um cartão vermelho, mas com o estreitamento das oportunidades de jogo. A dinâmica então se altera e o/a "perna-de-pau" passa a receber cada vez menos passes de bola, menos convites pra atuar em outras partidas, menos atenção. Quem nunca ouviu um "deixa quieto, ele/a é café-com-leite."(Nota cultural para pessoas mais xófens: café com leite era um termo bastante usado antigamente pra denominar alguém que estava na brincadeira mas que não marcava pontos, era iniciante, alguém que não contava).
Pessoas com perfil T
Quando comecei a trabalhar com design thinking no início de 2015, uma premissa aplicada à formação de equipes de projeto me chamou bastante atenção porque ia de encontro a tudo que eu vinha observando até então. Ao invés de juntar as mentes semelhantes e os veteranos como estratégia de jogo, ela propunha a diversidade de talentos e de modelos mentais para que as diferenças se transformassem no maior trunfo da equipe. A partir do conceito de "T-shaped people" (ou pessoas com perfil T) desenvolvido pela professora de Harvard Dorothy Leonard-Barton, entende-se que todos nós temos conhecimentos e competências que podem ser tanto largos (em seu alcance ou variedade) quanto profundos (em sua especialização e adensamento), simbolizados pela letra T. A barra vertical do T corresponde àquela área (ou áreas) nas quais a pessoa se tornou especialista ao longo da sua prática profissional ou acadêmica. Pense, por exemplo, em alguém que se formou médico, que depois se especializou em psiquiatria e que, ao longo de sua carreira, vem pesquisando e tratando de transtornos de ansiedade. Já a barra horizontal do T pode ser ilustrada por duas características : uma delas é a capacidade que alguém tem em compreender cognitiva e emocionalmente a perspectiva de alguém sem julgá-la (a popular empatia) e a outra, a capacidade de colaborar em múltiplas interfaces. Pessoas do chamado perfil T são mais abertas e mais curiosas, não se fecham à sua área de atuação profissional ou de interesses e gostos pessoais. Elas navegam com maior facilidade por diversos ambientes e disciplinas, não se sentem intimidadas quando deparam com o desconhecido. Ao contrário, são instigadas por ele.
Pessoas com perfil em T são conectoras do conhecimento e agregam valor aos times multidisciplinares. Imagem: Blog da Echos
Times interdisciplinares e responsabilidade compartilhada
Quando os times trazem em sua composição a profundidade do conhecimento técnico conjugada com um conhecimento mais amplo caracterizados pelo perfil T, a tomada de perspectiva dos desafios enfrentados por ângulos diversos auxilia na resolução dos problemas complexos que as organizações vêm enfrentando. No entanto, apenas essa condição não é suficiente para que a equipe atinja seu potencial máximo como inteligência coletiva. A diversidade dos saberes deve entrar como um dos requisitos para a formação dos times, constituindo o que conhecemos como times interdisciplinares. Diferentemente dos times multidisciplinares, onde cada um é responsável por e advoga a favor das suas próprias ideias, as ideias aqui são produzidas de maneira coletiva, em colaboração constante: cada integrante constrói a partir das ideias dos outro, usando-as como se fossem blocos de construção, onde cada contribuição permite que a próxima chegue ainda mais alto, mais longe ou mais a fundo, de forma que, ao final do projeto, todos se sintam integralmente co-responsáveis pela solução desenhada em conjunto.
Embora haja diversas vantagens em se trabalhar com times interdisciplinares, dentre as quais destaco o alcance de melhores resultados em menor tempo, é importante lembrar que a complexidade de se trabalhar colaborativamente também aumenta consideravelmente. Uma maneira bastante simples de contornar esse desafio e muito usada pelos facilitadores é o estabelecimento de acordos compartilhados assim que o time começa a trabalhar junto. Investir um tempo em coletar das pessoas envolvidas suas expectativas para o projeto, suas necessidades e objetivos pessoais bem como entender e registrar os valores compartilhados por todos é vital para uma largada com o pé direito.
Como líder ou facilitador, você irá experimentar momentos em que precisa reunir o time, esclarecer os objetivos, compreender suas motivações e ajudá-los a estarem mais alinhados e produtivos. — The Team Canvas
O Team Canvas pode ser usado para formatar os acordos iniciais do trabalho em equipe.
Esse ritual de início também contribui para a criação de um campo de segurança e de compartilhamento mais humano, como um convite para que as pessoas tirem por um tempo suas armaduras e se mostrem inteiras e mais vulneráveis, abrindo espaço para uma conexão mais verdadeira. Existem inúmeros jeitos de fazer isso, usando um canvas que já vem pronto com os campos a serem preenchidos como o Team Canvas, por exemplo, ou simplesmente facilitando essa conversa entre as pessoas a respeito do que é mais importante pra elas usando post-its.
Usando todos os "lados" do cérebro
Existe um mito que atribui aos hemisférios direito e esquerdo do nosso cérebro a responsabilidade pelos pensamentos holístico e analítico mas hoje em dia sabemos que a história é bem mais complexa. Há diversos modelos que buscam classificar os processos de pensamento e raciocínio humano, em alguns casos atribuindo-lhes certas "personas" com determinadas características: com certeza você já deve ter ouvido falar ou até feito algum teste de MBTI, DISC , HBDI ou Belbin para ver em qual categoria se encaixa — pensadores, inovadores, sonhadores, exploradores, diplomatas, a lista é longa. O que estes testes têm de mais interessante para a formação e facilitação de times é a oportunidade que eles abrem para que as pessoas invistam um tempo refletindo sobre seu estilo de pensar e agir enquanto preenchem os questionários e analisam os resultados. Essa prática faz com que possamos aumentar um pouco nossa consciência a respeito do fato de que os outros não pensam como a gente e que, ao invés de ficar brigando contra isso, podemos tirar vantagem dessas diferenças, incorporando formas diversas de pensar que nos ajudarão a encontrar soluções criativas para velhos problemas.
Inovação não tem a ver com genialidade solitária e sim com genialidade coletiva.(Linda Hill)
A professora de Harvard Linda Hill afirma em seu TED talk Como gerir a criatividade coletiva que "o coração da inovação é uma jornada, um tipo de colaboração para resolver problemas, geralmente entre pessoas que têm diferentes especialidades e diferentes pontos de vista". Grandes líderes facilitadores enxergam o potencial criativo desse paradoxo da colaboração na divergência e montam os seus times orientados para a diversidade de modelos de pensamento, de riqueza de repertório, de amplitude de especialidades.
Virando o jogo
Se reunir talentos diversos com repertórios únicos e modos de pensar antagônicos por si só já não é uma tarefa fácil, imagine conduzir o time ao resultado almejado sem que haja algumas baixas pelo caminho. É nesta hora que se faz necessária a figura do facilitador autônomo e consciente, aquela pessoa que vai conduzir as atividades e observar a qualidade da interação entre as pessoas com a intenção de alavancar o potencial criativo e inovador do time, garantindo a melhor entrega de cada um. Diferentemente do "capitão", aquele que escolheu seus parças com os quais se identifica e que falam a sua língua, o facilitador faz sua escolha em prol do melhor desempenho da equipe e dos objetivos do trabalho, considerando o talento e as diferentes perspectivas que cada indivíduo pode trazer para a arena, sabendo que cada um terá o seu momento de brilhar — não porque foi obrigado a estar ali, mas porque tem características únicas que farão aquele time virar o jogo.
Reinaldo Campos é um palestrante e facilitador CBJ Speakers.
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